A IDENTIFICAÇÃO DAS VÍTIMAS DE CRIME DE PIRÂMIDE FINANCEIRA NÃO PERMITE A RESPONSABILIZAÇÃO DO AUTOR DOS FATOS TAMBÉM PELO CRIME DE ESTELIONATO, DECIDE STJ

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) decidiu que a identificação de eventuais vítimas do crime de pirâmide financeira, previsto no artigo 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51, não permite a responsabilização do autor dos fatos também pelo crime de estelionato, previsto no artigo 171, do Código Penal.

No caso concreto, após uma pessoa ser denunciada pelos crimes de pirâmide financeira, estelionato, organização criminosa, previsto no artigo 2º da Lei nº 12.850/13, e lavagem de dinheiro, previsto no artigo 1º da Lei nº 9.613/98, seus advogados impetraram Habeas Corpus perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (“TJRS”), no qual, dentre outros argumentos, requereu-se que a ação penal fosse trancada em relação ao crime de estelionato, uma vez que a fraude já estaria abrangida pelo crime de pirâmide financeira, e que a responsabilização pelos crimes de estelionato e pirâmide financeira equivaleria à dupla punição pelo mesmo fato – o que é vetado pelo Direito Penal (ne bis in idem).

O TJRS denegou a ordem de Habeas Corpus sob o argumento de que, no crime de estelionato, tutela-se “a inviolabilidade do patrimônio particular em relação a atentados mediante fraude”. Por outro lado, no crime de pirâmide financeira, “busca-se proteger a economia popular”. Dessa forma, o TJRS firmou entendimento de que, apesar de em ambos os crimes se verificar uma fraude, os crimes de estelionato e de pirâmide financeira tutelam bens jurídicos diferentes, o que afastaria a alegação da dupla responsabilização pelo mesmo fato.

Irresignada, a defesa do réu interpôs Recurso em Habeas Corpus perante o STJ. Em seu voto, o Ministro-Relator, Schietti Cruz, verificou que o Ministério Público descreveu fatos semelhantes para denunciar o réu pelos crimes de estelionato e pirâmide financeira. Isso porque, em ambos os casos, o Ministério Público mencionou a prática de “golpe” em que o réu, junto com corréus, induziu vítimas em erro, mediante a promessa de ganhos financeiros elevados com a pretensão de levá-las a investir em suposta empresa de apostas em eventos esportivos.

O Ministro Schietti Cruz também salientou que a única diferença entre as imputações realizadas pelo Ministério Público é que, no caso do estelionato, foi possível identificar as vítimas, enquanto no delito da pirâmide financeira a identificação não ocorreu. Diante disso, o Ministro sustentou que “nas hipóteses de crime contra a economia popular por pirâmide financeira, a identificação de algumas das vítimas não enseja a responsabilização penal do agente pela prática de estelionato”. O entendimento já contava com um precedente do Tribunal (CC nº 133.534/SP) e foi seguido pelos demais Ministros da Sexta Turma.

Por fim, a decisão do STJ é salutar, uma vez que consolida o entendimento de que uma pessoa não pode ser denunciada por dois crimes diferentes pelo mesmo fato, quando verificado que um dos crimes foi criado especificamente para tutelar a situação do caso concreto. Do mesmo modo, a decisão consolida o entendimento análogo de que uma pessoa também não pode ser denunciada em mais de uma ação penal pelos mesmos fatos, em respeito ao princípio do ne bis in idem.

PESSOA JURÍDICA PODE CELEBRAR ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA, DECIDE TJSP

A 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”) decidiu que pessoas jurídicas podem celebrar acordo de colaboração premiada, previsto nos artigos 3º-A ao 7º, da Lei nº 12.850/13 – amplamente conhecida como “Lei de Organização Criminosa”. No caso concreto, uma pessoa foi denunciada pelo crime de lavagem de dinheiro, previsto no artigo 1º, § 1º, inciso II, da Lei nº 9.613/98 – “Lei de Lavagem de Dinheiro”. A denúncia foi baseada em documentos obtidos pelo Ministério Público a partir da celebração de um acordo de colaboração premiada com uma pessoa jurídica, que teria sido utilizada para a prática de crimes de organização criminosa e corrupção.

Diante da situação, a defesa do denunciado impetrou Habeas Corpus perante o TJSP, oportunidade em que alegou que o acordo de colaboração premiada era ilegal, uma vez que celebrado com uma pessoa jurídica, incapaz de externar espontaneamente seu interesse de realizá-lo, contrariando a própria Lei de Organização Criminosa.

O Desembargador-Relator do Habeas Corpus, Sérgio Coelho, discordou da defesa do acusado e sustentou que “não há vedação legal à celebração de acordo de colaboração premiada por pessoa jurídica”. Ademais, alegou-se que, a despeito da pessoa jurídica não poder ser responsabilizada pelos crimes de corrupção e organização criminosa, já que somente podem responder por crimes ambientais no Brasil, referida empresa esteve intimamente envolvida nos delitos apurados, o que lhe confere legitimidade para celebrar o acordo de colaboração premiada, por meio do fornecimento de informações relevantes sobre os delitos apurados e sobre a estrutura da suposta organização criminosa.

Além disso, o Relator argumentou que a pessoa jurídica é um sujeito de direitos e, por isso, tem capacidade e autonomia para firmar compromissos e agir por si voluntariamente. Os demais desembargadores seguiram o entendimento do Relator e denegaram o Habeas Corpus.

A decisão é de extrema relevância, pois se abriu um precedente para uma possibilidade costumeiramente não admitida pela doutrina e jurisprudência dominantes sobre o tema. Apesar disso, ainda que não exista previsão legal em contrário, uma interpretação sistemática da Lei de Organização Criminosa permite concluir que apenas pessoas físicas podem celebrar acordos de colaboração premiada. Isso porque a colaboração premiada é um meio de obtenção de provas que, em sua gênese, é celebrado por pessoas que integram uma organização criminosa e querem cessar sua participação nas condutas ilícitas, auxiliando as autoridades na investigação dos delitos. Tudo isso em troca de benefícios judiciais, que envolvem a própria aplicação da pena.

Como se não bastasse, as disposições na Lei de Organização Criminosa sobre a colaboração premiada se valem o tempo todo de expressões como “interessado”, “colaborador” e “investigado”, sem falar que uma das condições para a celebração é que o “colaborador” cesse sua participação delitiva e narre todos os fatos ilícitos para os quais concorreu e que tenham relação direta com os fatos investigados. Isto é, é necessário que se narre a conduta delitiva que o colaborador cometeu em coautoria com outras pessoas. Dessa forma, se pessoas jurídicas não podem cometer crime de organização criminosa, e o instituto da colaboração premiada se presta exatamente para desmantelar tais organizações, não podem as empresas serem parte nesse tipo de acordo.

Por fim, diante da provável impossibilidade jurídica da celebração de acordos de colaboração por pessoas jurídicas, espera-se que os tribunais superiores se debrucem sobre a questão o quanto antes, fornecendo um posicionamento definitivo e segurança jurídica para todos os jurisdicionados.

TJSP ANULA DECISÃO QUE PERMITIU O ACESSO AO CONTEÚDO DE APARELHO CELULAR SEM PRÉVIO PEDIDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO OU DA AUTORIDADE POLICIAL

A 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”) anulou decisão que permitiu o acesso ao conteúdo de aparelho celular sem prévio pedido do Ministério Público ou da autoridade policial. No caso concreto, quatro pessoas foram investigadas, denunciadas e condenadas em primeira instância pela prática dos delitos de tráfico de drogas e associação ao tráfico.

Referida condenação foi baseada em prova obtida a partir do acesso a telefone celular apreendido com um dos réus. O acesso ao aparelho foi autorizado pelo juiz de primeira instância sem qualquer requisição prévia do Ministério Público ou da autoridade policial que conduzia a investigação dos fatos.

Irresignada, a defesa de três dos quatro réus interpôs recurso de apelação ao TJSP, ocasião em que se alegou que a iniciativa do juiz de primeira instância em produzir provas sem qualquer requisição das partes no processo extrapola as funções constitucionalmente estabelecidas aos juízes – também conhecido como “sistema acusatório”, introduzido no Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/19 (“Lei Anticrime”) – e viola os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Em seu voto, o Desembargador-Relator, Newton Neves, deu razão à defesa e sustentou que o sistema acusatório está em conformidade com os princípios trazidos pela Constituição Federal de 1988, de modo que ao juiz do processo “não cabe a iniciativa de provas”, atribuição essa privativa das partes do processo (acusação e defesa). Do mesmo modo, argumentou que, ao permitir o acesso ao celular sem qualquer requisição prévia das partes, o juiz se colocou na função do Ministério Público, o que ofende o mencionado sistema acusatório.

Ademais, o Relator frisou que o acesso ao aparelho celular sequer poderia ser permitido com base no artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, que admite a determinação de produção antecipada de prova pelo juiz sem prévia requisição, em casos de urgência e relevância. Isso porque faltaria, no caso analisado, a urgência, já que o celular se encontrava apreendido e em guarda da autoridade policial.

Desta forma, os demais Desembargadores da 16ª Câmara de Direito Criminal do TJSP seguiram o Relator e declararam a nulidade da decisão que permitiu o acesso ao celular, a ilicitude das provas obtidas por meio do acesso ao aparelho e a nulidade da condenação dos acusados, determinando a reabertura do prazo para oferecimento de memoriais pelas partes.

Por fim, a decisão é de extrema importância, uma vez que reafirma os limites de atuação dos agentes processuais, de modo que ao juiz não cabe produzir provas ou auxiliar qualquer uma das partes (acusação ou defesa), mas tão somente supervisionar e controlar a aplicação da lei durante o processo, além de observar os princípios constitucionais.

STF TEM APLICADO A LGPD E O MARCO CIVIL DA INTERNET NO TRATAMENTO DE DADOS EM INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS

O Supremo Tribunal Federal (“STF”) tem aplicado as Leis nº 13.709/18 – “Lei Geral de Proteção de Dados” (“LGPD “) – e nº 12.965/14 – “Marco Civil da Internet” – para estabelecer limites a medidas cautelares requisitadas em investigações de natureza criminal.

Nos Mandados de Segurança nº 37.968/DF e 38.006/DF, foram questionadas requisições de quebras de sigilo bancário, fiscal e telemático de um investigado e de uma empresa, respectivamente, no âmbito de uma investigação com repercussões criminais. Nas requisições, não foram discriminados quais dados e conteúdo se buscavam, mas tão somente a partir de qual ano se pretendia adquiri-los. Dessa forma, os impetrantes requisitaram, liminarmente, a suspensão das requisições e, no mérito, sua anulação.

Em decisão monocrática em ambos os casos, o Ministro-Relator, Nunes Marques, determinou a suspensão das requisições e sustentou que, apesar de a LGPD não se dirigir especificamente à disciplina de medidas de investigação, seu artigo 4º, § 1º, expressa que atos que envolvam o tratamento de dados pessoais (toda operação realizada com dados pessoais) devem “sempre ser proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular”.

Dessa forma, Nunes Marques entendeu que, como os pedidos de quebra de sigilo foram vastos, amplos, genéricos e podem alcançar toda a vida privada e fiscal do investigado e da pessoa jurídica envolvida, a obtenção de referidos dados não seria proporcional, não atenderia ao interesse público e violaria de forma injustificada a privacidade e a intimidade não apenas do investigado e da pessoa jurídica, como também a de terceiros que sequer são investigados.

Por outro lado, em caso idêntico, no Mandado de Segurança nº 38.061/DF, o Ministro Ricardo Lewandowski permitiu que as quebras de sigilo bancário, fiscal e telemático fossem realizadas, mas ressalvou, de acordo com o artigo 23 do Marco Civil da Internet, que devem “ser tomadas as providências necessárias à garantia do sigilo das informações recebidas e à preservação da intimidade e da vida privada do impetrante e de terceiras pessoas”. Do mesmo modo, o Ministro Lewandowski advertiu que, apesar de não se direcionar para atividades de investigação, o artigo 4º, § 1º, da LGPD deve ser observado, de modo que o tratamento de dados pessoais por meio de medidas como as quebras de sigilo devem ser proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.

Por fim, a partir dos precedentes do STF, é possível extrair duas conclusões: (i) é necessário que se desenvolva uma LGPD penal – que já possui um anteprojeto apresentado à Câmara dos Deputados – que estabeleça fundamentos, balizas e limites precisos para a realização de medidas investigativas em processos criminais, como quebras de sigilo telemáticas, a fim de que seja possível corrigir (ii) a existência de uma insegurança jurídica, inclusive advinda da mais alta corte brasileira, no que concerne ao tratamento de dados pessoais no processo penal brasileiro.

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